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Introdução

 

A primeira descrição de uma artropatia deformante secundária a febre reumática (FR) foi feita pelo médico François-Sigismond Jaccoud em 1869(1). Por essa razão tal complicação ficou conhecida como “artropatia de Jaccoud” (AJ). Logo ficou constado que essa não era uma complicação articular específica da FR, sendo descrita em outras doenças, particularmente em lúpus eritematoso sistêmico (LES)(2). Em ambas as doenças calcula-se que a prevalência de AJ seja em torno de 5%(3). Uma vez que atualmente FR tem se tornado rara, a maioria dos casos de AJ vista no presente momento está associada a LES, embora casos isolados dessa artropatia tenham sido descritos nas mais variadas condições, incluindo síndrome de Sjogren(4), dermatomiosite(5), esclerodermia(6), sarcoidose(7), infecção pelo HIV(8) e até mesmo na ausência de doença associada, numa forma curiosa vista no idoso e denominada de AJ da senescência(9).

ASPECTOS CLÍNICOS DA AJ

 

Uma vez que as deformidades articulares vistas na AJ lembram bastantes aquelas da artrite reumatóide (AR) é de primordial importância a identificação dessa condição para que sejam evitados diagnóstico e tratamento inadequados. Assim, as deformidades mais comuns da AJ são vistas nas mãos como o desvio ulnar, o pescoço de cisne, o “z” do polegar, embora outras articulações possam ser envolvidas, como os joelhos, ombros e articulações dos pés(10). A característica clínica que classicamente diferencia a AJ das deformidades da AR é a sua “reversibilidade”, ou seja, as articulações voltam à sua posição normal à movimentação passiva. Porém, o termo “reversível” para designar a AJ, embora muito utilizado na literatura, parece inadequado pois uma vez essa complicação instalada, não mais volta ao normal. Daí, parece mais adequado o uso da expressão “redutível” à movimentação passiva. Por outro lado, em casos de AJ de longa evolução e com avançado grau de fibrose das partes moles como bainha de tendões e cápsulas, além da atrofia muscular e contratura pelo desuso, pode haver uma importante limitação dessas articulações deformadas, impedindo a sua completa movimentação mesmo passivamente, sendo responsável por uma piora considerável na qualidade de vida do paciente(3).

Um aspecto bastante curioso na AJ é que não necessariamente existe uma relação direta entre a agressividade da artrite e o desenvolvimento dessa complicação. Isso é particularmente visto em AJ associado à FR onde muitos pacientes têm dificuldade de lembrar a existência prévia de artrite naqueles sítios onde apresentam as deformidades, que geralmente são as mãos. Nesse contexto, como explicar a presença de AJ nas mãos dos pacientes com FR quando essa doença geralmente acomete as grandes articulações?

Recentemente, uma revisão sistemática sugeriu que a AJ seria uma fator predisponente para o desenvolvimento de ruptura espontânea de tendões em pacientes com LES(11). De fato, embora essa seja uma complicação rara em LES, dos 55 casos descritos, 16 tinham AJ concomitante (29%). O racional para isso é a demonstração de presença freqüente de tenossinovite em AJ e assim um potencial para enfraquecimento dos tendões e posterior ruptura.

Embora existam alguns estudos em LES associando a presença da AJ com o tempo de doença(12) isso é matéria de controvérsia, pois apenas uma minoria de pacientes com LES podem desenvolver JA a despeito de longa duração da doença.

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO

 

A primeira classificação de AJ foi realizada por Bywaters se referindo a pacientes com FR. Esses critérios incluíam a história de FR, deformidades reversíveis, ausência de erosões ao raio x e negatividade do fator reumatóide(13). 

No que se refere a LES, Alarcon-Segovia et al. propuseram a definição de “artropatia deformante de mãos” considerando apenas a presença de desvio do eixo das articulações metacarpo-falangeanas quando avaliadas por um goniômetro(14). Posteriormente, van Vugt et al. propuseram uma classificação alternativa das deformidades de mãos em pacientes com LES: aqueles pacientes com “artropatia deformante” segundo a definição de Alarcon-Segóvia eram então classificados como portadores de artropatia erosiva ou não erosiva baseados na presença ou não de erosões ao exame radiológico. O subgrupo com artropatia não erosiva era subclassificado como AJ definitiva ou artropatia deformante discreta(15).

Mais recentemente desenvolvemos uma proposta de critérios de classificação para AJ tomando como base a definição de Bywaters, mas acrescentando outros dados.(16):

1) Deformidades articulares típicas, tais como pescoço de cisne, subluxação do polegar, desvio ulnar , casa de botão, genu recurvatum , hálux valgo e pés chatos, que são corrigíveis em uma posição passiva.

2) Presença ou antecedentes de inflamação articular nas articulações deformadas, independentemente de sua intensidade ou etiologia (FR, LES , etc).

3) Ausência de deformidades semelhantes em outros membros saudáveis da mesma família.

4) Não erosão em radiografias simples, independentemente da constatação de erosões na ressonância magnética (RM) ou exame de ultra-som de alta performance.

A razão pela qual os itens 2 e 3 foram incluídos é a constatação de deformidades reversíveis em mãos de alguns indivíduos sem nenhuma doença associada, como uma característica fenotípica individual. Por vezes, os outros membros da mesma família podem ter tais deformidades. Nestes casos, geralmente as outras articulações não são acometidas.

MECANISMOS ETIOPATOGÊNICOS

 

De longa data é conhecido que as deformidades vistas na AJ são secundárias a anormalidades dos tecidos moles como frouxidão dos ligamentos e cápsula articular e desequilíbrio muscular. Há também sinovite menos agressiva que na AR e tenossinovite. 

O papel da hipermobilidade articular na predisposição para o desenvolvimento da AJ tem sido motivo de controvérsia com estudos mostrando uma associação positiva(17) e estudos não encontrando uma maior hipermobilidade articular nessa condição(18). Outro mecanismo ainda menos convincente seria a presença de hiperparatiroidismo secundário a insuficiência renal, que levaria a frouxidão ligamentar e tendínea por estimular a produção de colagenase(19). No entanto, isto não parece ser justificar a artropatia pois a maioria dos pacientes com AJ não tem insuficiência renal. 

Recentemente apresentamos no “4th Latin American Congress on Autoimmunity” os resultados de uma pesquisa desenvolvida no nosso serviço, em parceria com o Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia: pacientes com diagnóstico de LES, foram divididos em dois grupos, um com AJ (n=18) e um grupo controle sem AJ (n=62). Foram testados a velocidade de sedimentação de hemácias, proteína C-reativa (PCR), níveis de C3 e C4, anticorpos antinucleares, anticorpos anti-DNA e os níveis séricos de IL-2, IL-6, IL-10, IL-21 , IL -22 e TNF-α. Os níveis séricos de TNF-α IL-2 , IL-10 , IL-21, IL–22 não foram significativamente diferentes entre os dois grupos (p > 0,05 ) mas o nível de IL-6 foi maior no grupo com AJ (p < 0,001 ). Embora estes resultados preliminares não permitam estabelecer uma conexão direta entre a IL-6 e o desenvolvimento de AJ, eles lançam a idéia de que são necessários novos estudos para explorar o potencial benefício do bloqueio da IL-6 nessa complicação clínica(20).

CARACTERÍSTICAS RADIOLÓGICAS

 

Caracteristicamente a radiografia simples de articulações na AJ revela deformidades e subluxações , sem as erosões clássicas vistos em pacientes com AR. No entanto, através da utilização de métodos de imagem mais refinados como RM e ultra-som de alta resolução, é possível se observar pequenas erosões. Em um estudo realizado no nosso meio 20 pacientes com LES e AJ (19 mulheres e um homem) foram estudados por RM e um total de 300 articulações foram avaliadas. Nesse estudo algum grau de sinovite foi observada em 67,3%, tenossinovite em 38,5 % e em dezesseis de 300 articulações analisadas (5,3%) foram vistas pequenas áreas de erosão(21). 

MANUSEIO

 

Uma vez instaladas as deformidades da AJ poucas são as opções terapêuticas. O uso de órteses e a realização de fisioterapia não têm mostrado resultados satisfatórios, na nossa experiência. Estamos realizando um estudo piloto com a utilização de bandagem elástica na tentativa de melhorar a função articular, com resultados preliminares aparentemente satisfatórios.

Diferente do que ocorre na AR, há muito pouca experiência quanto à realização de cirurgia através do realinhamento dos tendões para a correção das deformidades da AJ. Nos poucos casos que acompanhamos os resultados foram frustrantes.

Assim, em teoria, parece que a melhor estratégia seria identificar aqueles pacientes com potencial para o desenvolvimento da AJ, através de marcadores genéticos ou perfil de citocinas e assim intervir precocemente e de maneira mais agressiva, antes do desenvolvimento das deformidades.

PERSPECTIVAS

 

Tomando como base a informação de que a deficiência de tenascina está associada à síndrome de Ehlers–Danlos(22), que é uma condição hereditária associada a hipermobilidade articular, desenvolvemos um projeto de pesquisa para estudar se há um menor nível sérico dessa proteína e se ocorreria mutação do seu gene em pacientes com AJ. 

Outro projeto de pesquisa a ser desenvolvido é a avaliação do valor da quimiocina CX-CL13 como marcador de atividade articular em pacientes com AJ. O racional para tal estudo é a observação de uma associação dos níveis séricos dessa quimiocina com o grau de sinovite em pacientes com AR quando avaliados por ultra-sonografia.

REFERÊNCIAS

 

1. Jaccoud FS. Sur une forme de rhumatisme chronique: lecions de clinique medicale faites a l'Hopital de la Charite. Paris: Delahaye; 1869. p. 598-616.

2. Manthorpe R, Bendixen G, Schioler H, Viderbaek A. Jaccoud's syndrome. A nosographic entity associated with systemic lupus erythematosus. The Journal of rheumatology. 1980;7(2):169-77. Epub 1980/03/01.

3. Santiago MB, Galvao V. Jaccoud arthropathy in systemic lupus erythematosus: analysis of clinical characteristics and review of the literature. Medicine. 2008;87(1):37-44. Epub 2008/01/22.

4. Ballard M, Meyer O, Adle-Biassette H, Grossin M. Jaccoud's arthropathy with vasculitis and primary Sjogren's syndrome. A new entity. Clinical and experimental rheumatology. 2006;24(2 Suppl 41):S102-3. Epub 2006/07/25.

5. Bradley JD. Jaccoud's arthropathy in adult dermatomyositis. Clinical and experimental rheumatology. 1986;4(3):273-6. Epub 1986/07/01.

6. Bradley JD, Pinals RS. Jaccoud's arthropathy in scleroderma. Clinical and experimental rheumatology. 1984;2(4):337-40. Epub 1984/10/01.

7. Lima I, Ribeiro DS, Cesare A, Machado WG, Santiago MB. Typical Jaccoud's arthropathy in a patient with sarcoidosis. Rheumatology international. 2013;33(6):1615-7. Epub 2011/12/27.

8. Weeratunge CN, Roldan J, Anstead GM. Jaccoud arthropathy: a rarity in the spectrum of HIV-associated arthropathy. The American journal of the medical sciences. 2004;328(6):351-3. Epub 2004/12/16.

9. Arlet JB, Pouchot J. The senescent form of Jaccoud arthropathy. Journal of clinical rheumatology : practical reports on rheumatic & musculoskeletal diseases. 2009;15(3):151. Epub 2009/04/08.

10. Ribeiro DS, Santiago M. Imaging of Jaccoud's arthropathy in systemic lupus erythematosus: not only hands but also knees and feet. Rheumatology international. 2012;32(2):567-8. Epub 2011/01/25.

11. Alves EM, Macieira JC, Borba E, Chiuchetta FA, Santiago MB. Spontaneous tendon rupture in systemic lupus erythematosus: association with Jaccoud's arthropathy. Lupus. 2010;19(3):247-54. Epub 2009/12/03.

12. Spronk PE, ter Borg EJ, Kallenberg CG. Patients with systemic lupus erythematosus and Jaccoud's arthropathy: a clinical subset with an increased C reactive protein response? Annals of the rheumatic diseases. 1992;51(3):358-61. Epub 1992/03/01.

13. Bywaters EG. The relation between heart and joint disease including "rheumatoid heart disease" and chronic post rheumatic arthritis (type Jaccoud). British heart journal. 1950;12(2):101-31. Epub 1950/04/01.

14. Alarcon-Segovia D, Abud-Mendoza C, Diaz-Jouanen E, Iglesias A, De los Reyes V, Hernandez-Ortiz J. Deforming arthropathy of the hands in systemic lupus erythematosus. The Journal of rheumatology. 1988;15(1):65-9. Epub 1988/01/01.

15. van Vugt RM, Derksen RH, Kater L, Bijlsma JW. Deforming arthropathy or lupus and rhupus hands in systemic lupus erythematosus. Annals of the rheumatic diseases. 1998;57(9):540-4. Epub 1998/12/16.

16. Santiago MB. Jaccoud's arthropathy: proper classification criteria and treatment are still needed. Rheumatology international. 2012. Epub 2012/09/06.

17. Guma M, Olive A, Roca J, Forcada J, Duro JC, Holgado S, et al. Association of systemic lupus erythematosus and hypermobility. Annals of the rheumatic diseases. 2002;61(11):1024-6. Epub 2002/10/16.

18. Klemp P, Majoos FL, Chalton D. Articular mobility in systemic lupus erythematosus (SLE). Clinical rheumatology. 1987;6(2):202-7. Epub 1987/06/01.

19. Babini SM, Cocco JA, de la Sota M, Babini JC, Arturi A, Marcos JC, et al. Tendinous laxity and Jaccoud's syndrome in patients with systemic lupus erythematosus. Possible role of secondary hyperparathyroidism. The Journal of rheumatology. 1989;16(4):494-8. Epub 1989/04/01.

20. Atta AMO, R. C.; Oliveira, I. S.; Menezes, M. P.; Santos, T. P. S.;  Atta, M. L. B. S.;  Santiago, M. B., editor. Inflammatory Response and Serum Levels of IL-6, IL-10, IL-21 E IL-22 in SLE Patients With Jaccoud’s Arthropathy. 4th Latin American Congress on Autoimmunity; 2013; Rio de Janeiro.

21. Sa Ribeiro D, Galvao V, Luiz Fernandes J, de Araujo Neto C, D'Almeida F, Santiago M. Magnetic resonance imaging of Jaccoud's arthropathy in systemic lupus erythematosus. Joint, bone, spine : revue du rhumatisme. 2010;77(3):241-5. Epub 2010/04/02.

22. Callewaert B, Malfait F, Loeys B, De Paepe A. Ehlers-Danlos syndromes and Marfan syndrome. Best practice & research Clinical rheumatology. 2008;22(1):165-89. Epub 2008/03/11.

 

 

 

 

 

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